Escritório Virtual – Boletim Março 2022

Guerra e Paz


все что я понимаю, я понимаю только потому, что люблю.

Tudo o que eu entendo, só entendo porque amo.

                   Andrei Bolkónski, personagem de “Guerra e Paz” (Leon Tolstói)


 

Guerra e Paz

Cena do filme “Guerra e Paz” (Sergei Bondarchuk, 1966)

 

Esperava aproveitar o informativo deste mês para discorrer sobre algumas boas notícias: o decréscimo dos casos de covid, a queda do dólar e a perspectiva de um começo de recuperação econômica. Assim como todos, todavia, me vi colhido pelas notícias e imagens de uma nova guerra, desta vez entre países irmãos que partilham um passado de séculos de convivência e união.

Mais até do que a guerra, surpreendi-me com a enxurrada de opiniões que, misturando história, geopolítica e boas doses do velho “achismo”, tentam justificar a inevitabilidade desse conflito: para uns, uma reação russa à tentativa da aliança militar ocidental em estender seu raio de ação para além das fronteiras tacitamente pactuadas; para outros, o desejo de um líder autocrata de recuperar prestígio interno através de uma política de reconquista do território da extinta União Soviética, ou mesmo da Rússia czarista.

Quase não vejo, contudo, comentários sobre o desejo do povo ucraniano. Com um idioma próprio e uma história que remonta ao começo da Idade Média, os ucranianos são o resultado de um cadinho cultural, com influências polonesas, germânicas e russas. Foram palco de conflitos entre povos tão distintos quanto os mongóis e os turcos otomanos. Unidos e separados diversas vezes ao longo dos séculos, conquistaram sua autonomia em 1991, junto com outras 14 nações, depois do colapso da União Soviética.

O que desejam os ucranianos? Claramente, querem manter sua independência. Também querem decidir seu futuro — o que significa escolher o quão próximos querem estar do ocidente e do oriente, já que têm raízes na Europa e na Ásia. É esse desejo que deve ser respeitado, e não as necessidades político-militares de potências vizinhas.

Quando escreveu “Guerra e Paz”, uma das mais importantes obras literárias de todos os tempos, o russo Tolstói refletia sobre a impotência do homem frente ao fatalismo histórico e a pequenez dos grandes homens comparados à beleza e complexidade do mundo. Um de seus personagens é o príncipe Andrei Bolkonsky: jovem ambicioso, admirador de Napoleão e adepto da crença de que os grandes líderes ditam os rumos da História, o príncipe Andrei aprende, no campo de batalha e na vida, que um só homem pouco pode contra os sonhos e desejos de muitos, e que o maior dos heróis é insignificante frente aos desígnios do destino.

Infelizmente, Putin não parece ter lido a obra-prima de seu conterrâneo e, claramente, não partilha seus ideais humanistas. Ao contrário, projeta uma imagem infantil de herói nacionalista que busca restaurar a glória de uma era idealizada, ao preço da vida e bem-estar dos vizinhos, tanto quanto de seu próprio povo.

E nós, brasileiros? Cabe-nos expressar nossa solidariedade ao povo ucraniano, se não por partilhar valores universais de paz e respeito, pelo menos para cumprir nossa Constituição, cujo artigo 4⁰, incisos III a VII, defende os seguintes princípios:

III – autodeterminação dos povos

IV – não-intervenção

V – igualdade entre os Estados

VI – defesa da paz

VII – solução pacífica dos conflitos